Zé Pio, 65, já fez de tudo nessa vida. Foi pescador, gigolô, vendedor de
pipoca, mecânico etc., mas foi como brincante do Bumba-meu-boi que ficou
conhecido por muitos. Começou a brincar aos três anos e emendou um boi no outro,
até criar os seus próprios, ao passo que nasciam seus oito filhos com Dona
Lúcia, sua esposa. Hoje lidera o Boi Ceará, que divide sede com o Reisado Nossa
Senhora de Fátima, comandando por seu filho Kiliano, de apenas 25 anos. Foi na
sede de ambos, em sua casa, nas Goiabeiras, entre a Barra do Ceará e o Pirambu,
que ele nos recebeu na última quinta-feira para contar uma parte dessa história,
que confunde misticismo e arte popular, drama e gaiatice.
OP - Mestre, quero começar com o seu cotidiano. O
senhor se dedica exclusivamente ao Bumba--meu-boi hoje?
Zé Pio - É...
OP - E aí, tem apresentações com que
frequência?
Zé Pio - Vamos lá que vai chegar aí onde você
quer.
OP - Começamos já.
Zé Pio - Já tá gravando?
OP - Já.
Zé Pio - Bom dia, eu me chamo
José Francisco Rocha, nasci em 1946, hoje eu estou com 65 anos e 6 meses, sempre
gostei de brincar o Bumba-meu-boi, mas minha profissão mesmo é pescador. Comecei
a brincar com três anos de idade, no Boi Rei de Ouro, do finado seu Vicente. Eu
com três anos de idade. Depois brinquei no Boi Garoto, depois passei para o
Bumba-meu-boi Ceará, do Mestre Assis, lá eu entrei com 10 anos e saí com 18
anos. Mas minha profissão sempre foi de pescador.
OP - Seu pai era pescador?
Zé Pio - Não, ele não era pescador. O meu pai era
jardineiro, mas meu pai casou com 30 anos, com 33 anos ele morreu. Eu fiquei com
três anos de idade. Eu puxei a vida de pescador porque minha mãe se casou com um
pescador. Então tinha dia que eu tava no mar, dia que eu tava em terra, aí os
pescadores diziam assim: “Rapaz, ninguém sabe o que o Zé Pio quer. Um dia ele tá
no mar, outro dia tá em terra, outro dia tá brincando no Boi. Podia botar o nome
do Boi dele de Terra e Mar”. Justamente porque eu botei o nome desse boi aqui
(apontando para um banner pendurado na parede com uma foto do Boi Terra e Mar),
que foi o meu primeiro Boi, dentro da comunidade das Casas Novas, no Pirambu.
Então me dediquei muito ao Boi Terrar Mar e já possui vários Bois. Mas quando
chegou a televisão foi logo matando a brincadeira de Bumba-meu-boi, de Pastoril,
de Coco, Caninha Verde, Maneiro Pau...
OP - Como ela acabou com isso?
Zé Pio -
Quando surgiu logo a televisão, aquelas canarinhos preto e branco, aquelas
grandonas, o que que fizeram? Os prefeitos e governadores pegaram a televisão e
botaram nas praças, aí o povo já não ia assistir ao Bumba-meu-boi, o povo se
empenhava mais era em assistir televisão, não ia mais pra olhar a brincadeira do
Boi e por isso o Boi foi se acabando, o Boi foi morrendo. Os próprios vaqueiros
de Boi foram deixando, brincantes partiram pro lado da bebida, então isso foi
derrotando, foi acabando a brincadeira do Boi. Quem ficou com essa grande
tradição de guardião de Bumba-meu-boi foi o Mestre Zé Pio, que sou eu e hoje eu
venho resgatando a cultura.
OP – O senhor está com 65 anos de idade e 62 de
Bumba-meu-boi. O que representa o boi pro senhor hoje?
Zé Pio - O Bumba-meu-boi representa pra mim uma religião que
eu tenho dentro de mim, guardada como é uma religião, porque na hora que eu
estou com essa fantasia aqui eu tenho que respeitar essa fantasia,
principalmente o Boi, porque o Boi tem hora que ele castiga se você não fizer as
coisas todas direito.
OP – Como assim?
Zé Pio - É uma religião
que ele tem... Esse ponto aí eu não posso soltar... Então é uma religião. Se a
pessoa não fizer as coisas tudo direito do Boi, tem tempo que ele castiga a
pessoa, então é por isso que a pessoa tem que fazer tudo direito, sem errar o
momento, porque, se errar, tem tempo, meu amigo, que você fica na peia e não
sabe por que é.
OP – O senhor acredita nisso piamente.?
Zé Pio - Isso aí quem passou pra mim foi até o Mestre Assis,
dono do Boi Ceará. Ele me deu até uns pontos terminais que eu também não
posso... Ele pediu antes de morrer: “Olha, vou passar isso aqui pra você, que
você tá mais novo de que eu, vou na frente mais primeiro que você, você vai
viver muitos anos de vida. Vou passar esse ponto pra você, mas esse ponto final
você não dê pra ninguém”.
OP - O ponto final que o senhor fala é uma
reza?
Zé Pio - É aonde está o segredo. O segredo tá aí. Tem
gente nova que acha que já sabe tudo, mas eu que estou com 65 anos e ainda estou
estudando o Bumba-meu-boi, ainda estou entendendo o que é o Bumba-meu-boi.
OP - Existe uma relação entre Deus e o boi pro
senhor?
Zé Pio - Tem, porque no dia 20 de janeiro a gente faz a
festa de São Sebastião. Não é nem pra eu comer carne de boi, mas eu sou teimoso
e como. Quando eu compro carne pra comer, primeiramente peço permissão a Deus
pra eu comer dessa carne. A brincadeira do boi, se você levar a sério, não é pro
dono do boi, o vaqueiro, comer a carne, não. O vaqueiro pode comer a carne do
boi só no dia 20 de janeiro, porque é uma festa, mas comer diariamente não pode.
Mas eu gosto muito de carne, eu quando tô com vontade como.
OP - Pois vamos falar da sua vida de pescador. Estava
conversando com a Dona Lúcia ali e ela disse que vocês passaram muita
dificuldade quando era pescador?
Zé Pio - Passei muita fome
e muita necessidade, eu mais essa mulher aqui (aponta para Dona Lúcia, ali
perto). Mas com todo o sofrimento nós nunca nos separamos, ainda estou vivendo
com ela.
OP - Ainda bebe o senhor?
Zé Pio - Graças a Deus não. Parei a bebida e parei o
cigarro, porque cachaça, cigarro e mulher bonita só usa quem pode. Estou
comprometido com Deus de não provar mais em bebida. O cigarro ainda posso voltar
a fumar, mas bebida não posso, porque eu estou com 17 anos que parei a bebida.
Tô com 17 anos que saí de casa morto, fui bater no Frotinha do Antônio bezerra.
Eu sei que naquela hora, aquele homem do mocotó pra frente, que esse homem o
povo crente é todo tempo na boca com ele... Então nessa hora aquele bicho do
mocotó pra frente queria me levar, mas Jesus chegou, olhou pra ele e disse: “Te
afasta desse homem que esse homem me pertence, eu vou renascer ele de novo, se
ele tornar a fazer o que ele vinha fazendo, aí você pega ele, leve ele e faça
dele o que você quiser”. Então é por isso que hoje estou agradecendo a Deus,
estou comprometido com Deus.
OP - O senhor disse que se não tratar um Boi direito ele
castiga. Mas o senhor ficou 10 anos sem botar o Boi. Deu problema nesse
tempo?
Zé Pio - Era um sofrimento, queria que você visse. Eu
bebia e jogava pra cima e pra baixo, bebia e bebia mesmo, não tava nem aí, não.
Eu ia pro mar, quando chegava já era bebo, e aquele negócio na minha cabeça, eu
sabia comigo, mas não dizia nada pra ninguém, mas graças a Deus chegou minha
sobrinha, deu a ideia e eu fiz o Boi de novo e graças a Deus eu melhorei de
vida.
OP - E como se ensina a brincar o Boi?
Zé Pio - Aqui a gente tem os meninos da comunidade que tão
dentro da percussão, eu tenho meu filho que é professor de percussão, que é o
Kiliano. Além de ser professor, ele tem o Reisado Nossa Senhora de Fátima. Então
aqui é onde se passa toda a experiência pros meninos da comunidade. E quero
falar também uma coisa: tem mãe que não tá nem deixando os meninos virem
brincar. Tem mãe que constrói toda a vida de católica, aí hoje, quando passa pra
dentro da igreja dos crentes, diz que o Boi é macumba. O povo não sabe nem o que
é uma macumba. Macumba não trabalha desse jeito. Eu trabalho na minha área,
deixa a macumba pra lá, só que o povo diz que o Boi é macumba, porque vê na hora
que os meninos estão tocando aquele tambor, estão dançando, aí acha que é
macumba. Isso é os pastores que botaram na cabeça deles lá. Aí eu quero saber
quando o pastor bota pra vender em cima deles uma casa, vender carro, vender
tudo pra dar pra eles, o que é isso aí?
OP - Mas o Boi tem um lado místico, espiritual, religioso.
Tem esse lado, não é?
Zé Pio - É uma religião, mas aí parou,
aí é onde tá o ponto.
OP - Como é que o senhor pensa a aproximação do Boi com
a juventude. Os jovens chegam espontaneamente ou o senhor tem que pensar
estratégias?
Zé Pio - Antigamente os brincantes chegavam pra nós, mas
hoje eles não estão chegando porque o que está desgraçando muito a vida de
jovens é a suingueira. A suingueira está esculhambando tudo, tá botando a nossa
juventude a perder. Homens que são homens ficam entrando naquela dança de
suingueira, quando dá um pedacinho tá com os quartos todos desmantelados. Vai
chegar um tempo que não vai ter mais Bumba-meu-boi, não. Se não chegar uma
“bolsa cultura” para o mestre ajudar o brincante, vai chegar um tempo que não
vai ter mais boi, porque não tem incentivo pro brincante.
OP - E esse dente de ouro?
Zé Pio - Esse
dente de ouro eu botei porque fica mais amatutado. Botei depois de velho, depois
de ser Mestre da Cultura já. Eu tinha duas janelinhas aqui, já tinha vontade de
botar, mas Deus me ajudou, eu pedi a permissão e Ele deixou. Eu podia ter botado
só o dente mesmo, mas eu botei uma capinha de ouro pra ficar mais amatutado. O
pessoal olha e fala: “O mestre ali é do tempo das matutagens, tem um dente de
ouro ainda mesmo no meio”. O próprio meu irmão parece que andou arrancando um ou
foi dois pra botar dente de ouro. O que eu tô fazendo, todo mundo tá fazendo!
OP - O senhor é muito bem humorado, é muito gaiato. Foi
sempre assim, desde menino?
Zé Pio - Desde menino, eu todo
tempo sou assim. Eu era menino quando o Circo Garcia chegou aqui, fui fazer o
teste pra trabalhar de palhaço. Passei em tudo, aí quando foi na hora, ele
disse: “Não, você não vai ficar%u018D não, porque você é gaiato demais” (risos).
Eu já fui tudo na minha vida. Já fui gigolô...
OP - Gigolô? Conta essa história aí.
Zé Pio
- É o seguinte. Eu rapazinho, frangote, peguei uma mulher que se
chamava Janete. Essa mulher, muito forte, muito gorda, vendia café lá na rua
Conde d’Eu e sempre ela botava os olhos pra cima de mim. Um dia ela me convidou
pra eu dormir com ela, agora é um tal de ficar, né? Eu fui dormir na casa dela,
quando deu três horas ela se acordou, foi fazer o café, encheu as garrafas e eu
fui deixar ela no ponto de ônibus, aí ela disse: “Olha, não quero você
trabalhando, não”. Nessa época, eu tinha 18 anos. Ela não queria que eu
trabalhasse. Ela ia vender o café e chegava com muito dinheiro, eu sabia que ela
soltava a frente, mas eu ficava calado porque ela tinha que me dar dinheiro,
então eu vivi com ela uns seis a oito anos, aí veio essa bonitinha aí, que é a
Dona Lúcia e tomou eu dela. Isso era uma briga medonha entre ela e a Janete.
Olha ela achando graça ali... Eu já fui tudo na minha vida. Já vendi picolé, já
fui garrafeiro, já vendi pipoca, já trabalhei de mecânico, já trabalhei de
torneiro, já trabalhei de marceneiro, tudo isso aprendendo, tudo isso eu já fui,
e já fui gigolô também da Janete, que eu quero que Deus dê muitos anos de vida a
ela, ela mora em Maranhão agora.
Pedro Rocha
pedrorocha@opovo.combr